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Como fazer sua pesquisa dialogar com a literatura científica

Há um momento no doutorado em que a escrita começa a parecer um eco. Você lê, anota, cita, costura… mas parecde que tem algo não encaixa. O texto descreve bem o que os outros disseram, mas ainda não soa como você.


É aí que entra uma das habilidades mais difíceis de desenvolver da escrita acadêmica: fazer a sua pesquisa dialogar com a literatura científica.


Escrever menos como leitor e mais como pensador

Muitos textos científicos falham não por falta de leitura, mas por excesso dela, especialmente quando o pesquisador transforma o capítulo teórico num repositório de resumos (é o tal do debruçar-se nos ombros dos autores, já ouviu?). A escrita analítica começa quando o texto deixa de listar e passa a conversar.

Dialogar com a literatura significa mostrar como o seu trabalho entra no debate acadêmico, e não apenas em qual estante ele se encaixa. Você não escreve no vácuo: escreve dentro de uma conversa que já está acontecendo há décadas, às vezes séculos. É essa conversa que legitima o que você faz e que mostra que seu estudo não é uma repetição, mas uma resposta.

A base do diálogo: escrever de forma argumentativa

Para que a pesquisa dialogue com outras, o texto precisa ter estrutura de argumento, não de relato. Isso significa apresentar ideias, evidências e contrapontos. Não basta descrever o que foi dito: é preciso posicionar-se dentro das tensões teóricas e empíricas do campo.


Um modelo útil para entender essa lógica vem do livro They Say / I Say, de Gerald Graff e Cathy Birkenstein. Eles propõem uma escrita em dois movimentos: o que “eles dizem” e o que “eu digo”. Essa alternância cria uma escrita dialógica, que faz o texto respirar entre a tradição e a inovação.


Com a prática, o pesquisador desenvolve um repertório de movimentos retóricos que dão ritmo e solidez ao argumento. Cada parágrafo passa a funcionar como um pequeno debate entre o que o campo já sabe e o que você descobriu.


Confirmar, ampliar, desafiar: três modos de diálogo

A escrita científica se constrói em uma relação com o outro. Essa relação pode assumir diferentes formas, dependendo de como seu estudo se posiciona frente ao que já foi produzido. Podemos resumir em três modos principais:


1. Confirmação

Quando seus achados reforçam o que outro autor já havia demonstrado.

“Meus resultados sobre (detalhe o resultado aqui) confirmam a tese de Autor (ano) de que (tese do autor aqui).”

A confirmação mostra coerência e consistência, mas só é relevante quando aprofundada ou contextualizada de modo novo.


2. Extensão

Quando você parte de uma teoria existente e a amplia, adaptando-a a um novo contexto.

“A partir do conceito de (cite o conceito) de Autor (ano), analiso como (descreva o que você analisa).”

Aqui o valor está em expandir o alcance de uma ideia, mostrando como ela se comporta em outro cenário.


3. Crítica ou Desafio

Quando seus dados contradizem ou tensionam o que outros autores afirmam.

“Ao contrário da interpretação de Autor (ano) de que (descreva a interpretação aqui), meus achados indicam que, (descreva seus achados).”

A crítica acadêmica não é ataque. É uma afirmação de autoria. Em vez de “X está errado”, prefira “Em contraste com X, meus resultados sugerem…”. A diferença é de tom.


Contribuir é mais importante que concordar

Dialogar com a literatura não é escolher um lado na disputa. É mostrar que você entende o campo o suficiente para participar da conversa. Às vezes, o diálogo virá na forma de confirmação, outras vezes de tensão ou de reconstrução conceitual, e todas são válidas se fizerem o leitor pensar diferente do que pensava antes.


O problema é que, sem essa dimensão argumentativa, a escrita acadêmica se torna apenas descritiva: um texto que informa, mas não transforma. E a ciência vive mesmo é do que transforma.


Entre o buraco e o espaço: duas formas de pensar uma contribuição

Tradicionalmente, orientadores ensinam o aluno a “encontrar uma lacuna”. Mas nem toda pesquisa precisa nascer de um buraco. Algumas criam o seu espaço, um novo modo de olhar para o que já existe.


Dialogar com a literatura é justamente o que permite essa criação de espaço. Ao articular teoria, método e evidência, você não apenas “preenche” uma ausência, mas propõe um deslocamento no modo como o tema é entendido.


Essa é a essência do trabalho intelectual: não repetir, mas reposicionar.


Para praticar na sua própria escrita

Quando for revisar um trecho do seu texto, faça o teste:

  1. Identifique um parágrafo onde você apenas descreve autores.

  2. Acrescente uma frase que mostre o que você faz com o que eles disseram.

  3. Pergunte-se: este parágrafo confirma, amplia ou desafia a literatura?

Se a resposta for “nenhum dos três”, ainda não há diálogo. Há apenas um inventário de ideias alheias.


Em resumo

Fazer a sua pesquisa dialogar com a literatura é o que transforma o texto de um aluno em um texto de pesquisador. É o ponto em que a escrita deixa de narrar o campo e passa a fazer parte dele. É também o momento em que o leitor sente que há uma mente pensando, e não apenas escrevendo.


O objetivo final da escrita científica nunca foi provar que você leu muito. É mostrar que você pensou profundamente sobre o que leu. E é nesse gesto, entre o que os outros disseram e o que você tem a dizer, que nasce a sua voz acadêmica.

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