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Revisão por pares não nasceu por amor à ciência

A maioria dos pesquisadores nunca pensou sobre isso, ou então acredita que a revisão por pares sempre existiu e que sempre foi a forma mais justa de validar conhecimento científico. Era uma tarde de sábado e eu, uma mãe de criança de quase dois anos, me fiz essa pergunta: de onde surgiu a revisão por pares? Com um tiquinho de ChatGPT e muito Google Scholar, senta que lá vem história.


A revisão por pares não nasceu como sinônimo de rigor, mas como um sistema institucional de controle e autoridade sobre o que estaria autorizado a circular como ciência. E entender isso é fundamental pra gente saber o motivo por trás do publish or perish, da ciência salame, da indústria das publicações e por que tanta gente está adoecendo no processo.


UM BREVE RETORNO HISTÓRICO


Antes do século XVII, o saber científico circulava em cartas, manuscritos e tratados. Quem validava uma ideia era a reputação de quem a defendia, e não um sistema externo de arbitragem.


Foi só em 1665, com o surgimento da Philosophical Transactions da Royal Society de Londres, que o conhecimento começou a ser publicado periodicamente. Mas ainda não havia revisão por pares: a validação era feita por editores, quase sempre baseados em afinidades políticas e intelectuais.


Ao longo dos séculos XVIII e XIX, as academias de ciência foram se consolidando como guardiãs do saber. Mas a prática da revisão por pares só se tornou uma regra depois da Segunda Guerra Mundial, impulsionada pelo crescimento da produção científica e pela necessidade de regular financiamentos e prestígio institucional.


Então a revisão por pares é uma invenção recente? Sim senhores.


O que a gente entende hoje por “revisão por pares” (pareceres anônimos, arbitragem técnica e possibilidade de rejeição com base em mérito) é uma construção do século XX, moldada pela explosão dos periódicos e pela industrialização da ciência.


Ela não surgiu como um ideal ético universal, mas como um mecanismo de triagem necessário diante do crescimento do sistema acadêmico.


AS AMBIGUIDADES DO SISTEMA


A revisão por pares é importante. Mas ela também é imperfeita. Ela é, ao mesmo tempo:


  • Guardiã do rigor e instrumento de censura ao novo

  • Barreira contra fraudes e reprodutora de vieses institucionais

  • Processo de validação e fonte crônica de ansiedade e medo

  • Uma forma de qualificar a ciência e uma forma de explorar pesquisadores e revisores


Pesquisas mostram que a revisão por pares reproduz viés de gênero, de instituição, de país e de área. A transparência ainda é baixa. E há um incentivo velado à publicação de resultados “positivos” em vez de ciência reprodutível.


E estamos no mundo da IA, lembram? A quantidade de artigos publicados com frases típicas do ChatGPT, como "não consegui fazer a leitura desses dados" é crescente e demonstra (1) pesquisadores cada vez mais ocupados com a quantidade de artigos a publicar e (2) revisores que na verdade não revisam.


ENTÃO QUAL É A SOLUÇÃO?


Repensar, refletir e educar.


Revisão por pares não deve ser um dogma. Deve ser um sistema revisável como qualquer construção científica.


Enquanto isso, precisamos educar pesquisadores para:

  • entenderem o processo por dentro

  • saberem como lidar emocionalmente com a rejeição

  • entenderem que um parecer duro não é um atestado de fracasso

  • e que uma publicação aceita não é sinônimo de excelência absoluta


Além disso, é urgente que entendamos que artigo publicado é diferente de avanço concreto no conhecimento. Volte muitas casas, lá para a ciência do século XVII e entenda que muitas vezes uma vida inteira ainda não é o suficiente para um avanço que "muda o mundo". Seu doutorado é um ensaio, uma tentativa, um gesto à frente. E sim, isso por si só já é uma contribuição.


No Acadêmicos Anônimos, a gente ensina isso. Não porque queremos criar “pesquisadores perfeitos”, mas porque acreditamos que ninguém precisa adoecer pra contribuir com a ciência.


Referências

Baldwin, M. (2018). Making "Nature": The history of a scientific journal. University of Chicago Press.

Fyfe, A., Coate, K., Curry, S., Lawson, S., Moxham, N., & Røstvik, C. M. (2017). Untangling academic publishing: A history of the relationship between commercial interests, academic prestige and the circulation of research. Zenodo. https://doi.org/10.5281/zenodo.546100

Kronick, D. A. (1990). Peer review in 18th-century scientific journalism. JAMA, 263(10), 1321–1322. https://doi.org/10.1001/jama.1990.03440100061027

Lee, C. J., Sugimoto, C. R., Zhang, G., & Cronin, B. (2013). Bias in peer review. Journal of the American Society for Information Science and Technology, 64(1), 2–17. https://doi.org/10.1002/asi.22784

Smith, R. (2006). Peer review: a flawed process at the heart of science and journals. Journal of the Royal Society of Medicine, 99(4), 178–182. https://doi.org/10.1177/014107680609900414

Spier, R. (2002). The history of the peer-review process. Trends in Biotechnology, 20(8), 357–358. https://doi.org/10.1016/S0167-7799(02)01985-6

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